domingo, 19 de julho de 2009

A carta

A próxima carta que te vou escrever vai ser em papel branco e com tinta invisível. Vais abrir o envelope, selado com cera cor de vinho e cuidadosamente, retiras a carta, a carta que tem escritas todas as palavras que te quero dizer, a carta que vai revelar a história que te conto em silêncio todos os dias antes de adormecer, a carta que te vai fazer voar para longe, como o vento faz voar um saco de papel, levanta voo e desaparece, para sempre.
Vou encher um copo de água com açúcar, pegar num pincel fino e escrever-te. Sim é isso que vou fazer, até porque para além de falta de opções não acredito na velha máxima “ as mais belas palavras são aquelas que ficam por dizer “. As mais belas palavras são ditas, escritas ou murmuradas todos os dias; são proferidas em cada silêncio, em cada toque e tem cada olhar. Por isso vou escrever-te, vou passar para o papel com uma letra floreada todas as palavras belas que tenho para ti, vou dizer-te que o silêncio é na verdade uma vontade quase incontrolável de falar, a ausência aperta-te o coração como os sapatos dos grandes estilistas me apertam os pés, a saudade é o London Eye, está voltada para a sua alma gémea sem lhe poder tocar e a paixão é um terminal de autocarros e cada um tem o teu nome escrito no destino.
Acende a luz. Precisas de luz para ler as minhas “mais belas palavras”.
Acende um holofote, precisamos mesmo de luz.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Guerras

Acho que é altura de partir. Quando não podemos ganhar uma guerra nem nenhuma batalha intermédia a melhor opção é baixar as armas, arrumar a tralha e partir. Por a mochila às costas e caminhar firmemente pelo caminho esburacado que é a estrada da vida.
A minha guerra terminou. Estou determinada a pousar as armas, a retirar o colete à prova de balas e virar costas. Desisto, desisto de continuar a lutar numa guerra que nem sequer foi real, recuso-me lutar por uma causa sem fundamento, não vou e nem quero lutar sozinha. Acabou.
Entrego-te o colete à prova de balas, porque de nada me serve. Ofereceste-mo no nosso primeiro encontro com a promessa de que estaria protegida hoje, agora e sempre mas foi apenas mais uma, doce, mentira. Não me protegeu, não me protegeste, pelo contrário… Descobriste os meus pontos fracos e fizeste pontaria certeira sem qualquer dor e atingiste-me.
Soldado ao chão.
E eu que pensava que tinha amarrada à testa a faixa de grupo rebelde e cruel… Olha, sinceramente não sei quem foi o pior. Não sei se fui eu, que pouco dei de banalidades, mas tudo dei em nobreza de sentimentos ou se tu, que fizeste um quadro perfeito do teu ser, mas nunca me mostraste a essência, ou melhor, mostraste uma falsa essência, uma falsa paixão.
Desisto.
Hoje acaba o meu sentimento de culpa. A partir deste momento vou voltar a dormir uma noite inteira sem acordar a pensar que abanei a vida de alguém, vou despertar sem a ilusão de paixão, vou acordar para a vida, vou acordar para ti… Miragem de homem, pela qual eu me apaixonei.
Dor.
Tornei-me imune, transformei-me num boneco estático, inexpressivo e frio.
Vazio.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Voar

Bem, meu querido, parece que decidiste que vamos viajar juntos.
Saí do táxi à porta do aeroporto e caminhei para a zona das partidas levando apenas uma pequena mala de bagagem de mão. Caminhei naquela confusão de partidas e de chegadas, de sorrisos e lágrimas, de paixão e ódio até à zona da segurança. Despi o meu casaco forte e tirei o meu fio e caminhei para a zona segura e tu, surpreendentemente, apareceste; chegaste do nada como um raio de sol depois na mais terrível tempestade. Agarraste a minha mão gelada com a tua mão quente e entrelaçaste os teus dedos nos meus, como se te pertencessem.
Esperamos, afinal é o que se faz no aeroporto. Eu encostei a minha cabeça no teu ombro e respirei-te, absorvi-te e guardei-te em mim, decorei o teu aroma em mim, guardei-o secretamente no compartimento das saudades para abrir sempre que necessário. E tu, tu ias afagando o meu cabelo com a delicadeza com que os joalheiros manuseiam os seus, mais valiosos, diamantes.
Chamaram. O nosso voo ecoou em todo terminal.
Sorriste-me levemente e caminhamos para o autocarro que nos levaria até ao avião. Deixaste-me subir em primeiro lugar e fomos durante todo o caminho, entre solavancos e apertões, a olhar-nos nos olhos. Eu a olhar para os teus olhos cor de fumo e tu para os meus, cor de sol poente.
Quando apertávamos finalmente o cinto de segurança e levantamos voo, beijaste-me a testa e deste-me a mão. Tu sabes que eu odeio levantar voo.
Leste para mim. Quando pudemos finalmente tirar os cintos de segurança e os descansos entre cadeiras, eu recostei-me em ti e tu leste para mim. Falavas num tom claro, decidido e forte. Pouco a pouco ias-me embriagando com tão maravilhosa sonoridade.
Aterramos. Agora foi a tua vez de respirar mais fundo. Odeias aterragens. Sorri para ti, depositei-te o meu mais terno e duradouro sorriso, dei-te o sorriso que te daria sempre e para sempre.
Estava a chover. Eu apertei casaco preto e tu ajeitaste-me a gola enquanto vestias também o teu casaco. Caminhamos de mãos dadas, enquanto bebíamos um chocolate quente e descobríamos aquele país tão nosso, aquele país que surgia quando as nossas fotografias eram relevadas.
Quando finalmente anoiteceu e rumamos ao hotel eu achei que não havia momento mais perfeito, não havia momento mais perfeito do que aquele em que eu me deitaria ao meu lado e tu te aninharias em mim enquanto passavas a mão sob a minha barriga. Quando finalmente adormecesses eu ia sentir a tua respiração calma e profunda até eu própria adormecer.
Não, não fizemos amor nesta noite. Afinal temos uma vida inteira pela frente… Que importância tem uma noite quando nos espera a eternidade?
Quando acordei estavas de pé, junto à janela a contemplar o nevoeiro e o silêncio. Levantei-me da cama, beijei-te o ombro e enquanto te abraçava disse:

Adoro-te, meu querido.


In: Underground, London.